Era quarta-feira, me lembro porque passaria algum tempo contando esse período. Faz uma semana. Duas semanas. Um mês. Com a gentileza do tempo, esqueci. Sei, apenas, que faz mais de um ano. Era quarta-feira. Atenderia durante o dia e, pela noite, seria o primeiro dia de minha primeira Oficina de Escrita. Aconteceu de ser assim: o dia de minha oficina foi também o dia em que recebi o cuspe de um morador de rua.
Existe uma simbologia cultural com os cuspes. Não são só uma forma de invasão e desrespeito, mas uma maneira de colocar em ato o desprezo. Uma poderosa e sutil agressão. Eu te desprezo, ele me disse com o corpo. Mas eu também havia dito antes, com o corpo. De algum modo, quase fomos parceiros. A parceria mais miserável que já tive.
Poucos minutos após esse ocorrido, lembro-me de estar completamente paralisada no elevador do meu prédio. Me veio uma fala que havia visto há alguns dias, enquanto preparava o material de minha Oficina. Era o vídeo de uma escritora dizendo que, por mais terrível que fosse o que lhe acontecesse, havia sempre um estranho alívio: ela ainda poderia escrever. Era essa a tragicidade: o material que eu havia cuidadosamente preparado, se fazia verdade em mim. Ao menos poderei escrever. Demorei. Ensaiei algumas vezes e escrevo sobre isso agora porque comentei o ocorrido em um dos episódios do meu podcast, e esse episódio sairá em breve. O incômodo de saber que essa história logo se tornará real só se ameniza se eu puder contá-la antes. Este texto é uma tentativa neurótica de falar antes de mim.
Era quarta-feira. Eu estava atrasada para meu primeiro atendimento do dia. Escuto pessoas, na maior parte do meu tempo. Precisava de café. Mais terrível que chegar atrasada seria iniciar meu dia sem café. Envio mensagem ao meu paciente: atrasarei 5 minutos. Corri até a pequena cafeteria ao lado do meu prédio. O de sempre, pedi. Estou atrasada. Era o que pensava enquanto escutava ao meu lado o morador de rua me chamar incessantemente. Moça, moça, moça. Sabia que era um morador de rua pelo cheiro. Não virei o rosto para ver. Era uma quarta-feira ensolarada e enquanto aguardava a atendente da loja preparar meu café, suportava. O repetitivo morador de rua continuou a me chamar de moça. Então, sem o olhar, digo com minha apatia atrasada: Não tenho dinheiro. Eu não tinha tempo. Não me preocupei em checar seu rosto de insatisfação que certamente teve. Uma parte de mim não queria. Outra, tinha medo. Um medo distante e moral. Escuto pessoas na maior parte do meu tempo, mas não queria escutá-lo. Escrevo isso advertida de minha superioridade hipócrita e minha indiferença morna. Escrevo com vergonha. Mas é preciso escrever. Já foi dito: a vida não se faz de bons sentimentos, a escrita também não. Estou atrasada, eu pensava. Ele continuou reclamando do meu lado e, em suas repetições, disse algo do tipo: Você não me deixou falar! Não sabia se iria pedir algo. Sim, eu sabia. Nós dois sabíamos. Mantenho meu rosto firme olhando apenas para o meu café. Estou atrasada. Enquanto passava o cartão, quase me esqueci da sua presença. Até que, como um leve incômodo, sinto algo atingindo meu cabelo pela parte de trás, quase imediatamente coloco a mão e, de alguma forma, sei: ele cuspiu em mim.
Ali estava. Eu, com meu ódio morno. Ele, com sua violência legítima. Pareceu quase justo.
Então sinto a saliva em meus dedos. É a saliva ressentida de um homem não olhado, a miséria da necessidade. Demoro alguns segundos para entender o que aconteceu. Neste tempo, ele já está do outro lado da rua me xingando de coisas que não quis escutar. Estou atrasada. Fiquei parada por alguns segundos olhando para minhas mãos. Em uma, o café. Em outra, a saliva ressentida. Estou atrasada. Andei o mais rápido que consegui até o elevador do meu prédio. Meus olhos encheram de lágrimas. É o dia da minha Oficina. Respiro. Chego no consultório, finalmente. Ainda estou atrasada. Preciso de mais 5 minutos, digo. Neste momento, já haviam passado 10. Uso meus novos cinco minutos dentro do banheiro fazendo um banho a seco com álcool em gel. Respiro. Entro na minha sala, olho para o café. Ok, já passou. Aceita uma água? Pergunto com a naturalidade de uma quarta-feira ensolarada. Não, obrigado. Fecho a porta enquanto penso pela última vez até o final do dia: é preciso reconhecer, ele tem uma coragem que não tenho.
Que experiência intensa, traduzida em palavras fortes.
que texto forte, Larissa…sem palavras